Nossa intuição nos diz que quando estamos em uma situação onde a demanda dos nossos sistemas de trabalho é muito grande, nossa resposta deveria ser focar em aumentar nossa capacidade de produzir mais ou aumentar nossa eficiência para uma produção mais rápida. Estou convencido que a única razão pela qual fazemos isso é porque não queremos lidar com os desafios que envolvem mexer com uma das melhores alavancas para essas situações: redução de demanda. Na verdade, há indicadores que nos dizem que agir para aumentar a capacidade de produção tem um efeito imediado na demanda, fazendo-a aumentar progressivamente até novamente sobrecarregar o sistema não muito tempo depois.
Este fenômeno é conhecido por engenheiros de tráfego já há muitas décadas. Sabe-se que quando aumentamos a capacidade de qualquer sistema de transporte, trazemos junto com esse aumento um efeito de médio prazo associado que pressiona a demanda para cima novamente. Pesquisadores sugerem que quando o tempo de viagem é reduzido em 1%, com ele vem um aumento de 0.5% no volume de tráfego no mesmo ano. Nos anos seguintes, esta taxa tende a gradualmente alcançar uma proporção de um pra um. Isso acontece por vários motivos, por exemplo, as pessoas mudam suas rotas para se beneficiar dessa nova capacidade; ou elas se mudam para lugares longe do centro, mais baratos, já que agora há mais viabilidade ou mais conforto no transporte. Elas também param de usar estratégias para evitar o tráfego, como comutar em horários menos sobrecarregados; ou elas simplesmente compram mais carros (quase um para cada membro da família). Sendo assim, qual é o ponto em aumentar capacidade no tráfego se o efeito de longo prazo disto é perpetuar sua ineficiência?
Qual é o propósito de um sistema de transporte? Se é carregar o máximo de pessoas possível de um ponto para outro da cidade, então a estratégia de colocar mais ônibus e carros nas estradas e contruir mais vias de repente pode ser considerado válido. Mas claramente não é isso que vai tornar as coisas melhores para as pessoas. De qualquer forma, problemas de tráfego são muito mais complexos do que nós imaginamos e este é apenas mais um elemento que devemos considerar.
Eu acredito que o fenômeno da “Demanda Induzida” está muito presente no trabalho do conhecimento também. Nesse tipo de trabalho, o sistema como um todo sofre por causa da pressão da demanda. Acontece quando você está trabalhando com serviços, manutenção ou desenvolvimento de produtos. Grandes backlogs de produtos, no caso de desenvolvimento, são buffers que o tornam menos responsivo para atender seu propósito. Sistemas de serviços com altos níveis de demanda não escalam sem a presença de uma alta taxa de falhas e insatisfação dos clientes.
Trabalhadores do conhecimento podem aprender com isto e aplicar conceitos similares para lidar com a tão comum realidade de ter muita demanda e pouca capacidade para respondê-la. O Kanban, nesse contexto, é uma abordagem que encoraja as pessoas a refletirem constantemente na relação demanda versus capacidade. Balancear demanda com o rendimento é certamente um dos efeitos mais impactantes gerados por implementações Kanban.
Algumas coisas para refletir quando você estiver nesse contexto:
- Revisão de propósito: Qual é o propósito do seu sistema? Frequentemente nós cegamente respondemos a pedidos de clientes sem muito questionamento. Clientes não tem o hábito de pensar sobre o sistema como um todo quando eles fazem pedidos. Eles têm seus próprio interesses que eventualmente podem conflitar com o que seria melhor para o sistema como um todo. Como fornecedor, você deveria ser capaz de questionar e analisar cada demanda sob tal perspectiva. Filtrando, priorizando e selecionando o quê realmente deve gerar valor para o todo. Por exemplo, ações que poderiam ser tomadas para reduzir demanda passível de ser endereçada por automação são raramente consideradas porque não partem dos clientes. Entretando, elas têm um alto impacto no sistema como um todo, especialmente no médio e longo prazo.
- Restrições no aceite de demandas induzem criatividade. Em desenvolvimento de software, por exemplo, é muito fácil ter idéias para novas funcionalidades no produto. O seu backlog cresce e com ele a sensação de que o sistema é lento para produzir, pois nunca consegue queimar escopo o suficiente ou leva muito tempo pra isso. Assim, não permita que seja muito fácil adicionar novos itens em um backlog. Não gerencia dezenas de items “a fazer”. Foque não apenas em descobrir as melhores funcionalidades para o seu produto, mas também em descobrir porquê tais features não deveriam ser construídas em primeiro lugar.
- Use modelos econômicos a seu favor: Faça demanda com baixo valor custar mais caro. Isso vai reduzir demanda de forma imediata. Empresas que permitem a customização do software utilizado por seus clientes podem trabalhar com preços que considerem o valor daquele pedido para o todo na conta total.
- Conscientize: Se você e seus clientes estão na mesma organização, ajude-os a entender os efeitos da sobrecarga de demanda. Tente distribuir o orçamento de forma a implementar estratégias explícitas para redução de demanda.
- Não aumente a capacidade sem ter um plano de redução de demanda associado.
- Mantenha sua atenção na demanda. Sempre. Há muitas alavancas nessa área. Algumas delas são muito impactantes.
Sistemas do trabalho do conhecimento que funcionam sob altas taxas de demanda são normalmente pobres em qualidade. Em tais sistemas, excelência não é uma opção. Eles desmotivam as pessoas e levam clientes a um estado de insatisfação eterno, não importa o quão duro você trabalha para parecer eficiente.
Esse e vários outros temas interessantes são discutidos no curso de Kanban da K21. Se ainda não fez, informe-se sobre novas turmas e matricule-se.
Autor convidado: Alisson Vale
Especialista em gestão Ágil e Lean, desenvolvedor de software, educador e empreendedor. Com mais de 20 anos de experiência em desenvolvimento e liderança de projetos de software, tem sido um praticante e divulgador de métodos modernos de gestão desde 2003 com uma grande participação em congressos e fóruns de debate no Brasil e no exterior.