São três os motivos para não chamarmos os Humanos de Recursos:
- Trabalho criativo não é linear (recurso remete à ideia de linearidade);
- Desconsidera a principal variável no resultado de um time: a colaboração;
- Rotula as pessoas como se elas não fossem capazes de aprender coisas novas.
Aproveite para escutar este artigo!
Nesta Parte 1 de ‘Humanos sim, Recursos não!‘, estou explorando apenas o primeiro desses motivos.
Trabalho criativo não é linear
Nessa discussão é pertinente diferenciar o trabalho braçal do trabalho criativo.
Trabalho braçal
O trabalho braçal tende a ser linear. Se um pintor de parede pinta metade da parede em 1 hora, espera-se que ele conclua o seu trabalho em 2 horas. Se um pedreiro levanta um muro de 1 metro em 4 horas, espera-se que o muro tenha 2 metros após 8 horas. O trabalho braçal tende a ser linear. Essa linearidade acontece também com recursos materiais: máquinas, insumos, dinheiro e etc. Já em trabalho criativo, o resultado raramente é linear. Aliás, mesmo o trabalho braçal pode não ser linear se houver uma fadiga muscular ou stress no corpo.
Trabalho criativo
Estamos falando de trabalhadores do conhecimento. O trabalho criativo é não linear. Possivelmente, você que está lendo esse texto é um trabalhador criativo, então responda a seguinte pergunta:
– Qual a parte do seu corpo que é a mais usada na execução do seu trabalho?
Claro que a resposta é o cérebro! Você é diferente do trabalhador braçal, cujos os músculos, em geral, são sua principal fonte de geração de dinheiro. É natural que um trabalho que dependa da criatividade não seja linear.
Se o seu trabalho rendeu bem de manhã, não podemos assumir que vai render bem à tarde. (Aliás, certa vez, ao comentar isso, ouvi a seguinte frase: “pelo contrário, se rendeu bem de manhã, já tá bom, não preciso render bem à tarde…” ). Infelizmente, não podemos prever a nossa criatividade, o que torna o resultado não linear.
24 horas por dia
A perspectiva do entendimento que o nosso trabalho é não linear pode nos levar a outros questionamentos. Será que faz sentido cobrar tão precisamente o horário de trabalho das pessoas? O número de horas que a pessoa passa no escritório é o que determina a sua produtividade? A verdade é que trabalhamos 24 horas por dia. Quando saímos do nosso trabalho, de fato, o trabalho nos acompanha.
O trabalhador do conhecimento leva o trabalho para a casa, na saída do escritório continuamos pensando no trabalho. Até no banheiro as pessoas estão pensando no trabalho (no banho, claro). Mesmo dormindo isso acontece. Todo mundo já sonhou com o trabalho! Às vezes as pessoas acordam com a solução de um problema. Tem alguns que até deixam um caderninho na mesinha de cabeceira para anotar qualquer ideia no meio da noite.
Desenvolvimento de software
Em especial, a atividade de desenvolvimento de software há muitos anos sofre um preconceito. Em uma infeliz comparação com a engenharia civil, a codificação foi considerada por alguns como uma simples execução de uma especificação, tal como em uma obra, onde o peão faz o que o arquiteto/engenheiro mandou. Porém, o “peão” de software é extremamente criativo. Cada linha de código é um ato de criação e cada declaração de variável é um ato de batismo. Em softwares de mercado, podemos afirmar que há sempre bilhões de maneiras corretas de fazê-los (e trilhões de maneiras incorretas). Ou seja, a não linearidade é extrema em programação.
Práticas não lineares (que fazem sentido)
Por isso, é tão questionador quando gestores se incomodam com:
– Trabalho em par. Pensamento do chefe tradicional: “estou pagando para duas pessoas fazerem o trabalho de uma só”. Claro que para trabalhos lineares isso não faz sentido. Ninguém espera ver dois pedreiros juntos colocando o mesmo tijolo no muro, ou dois pintores de parede estarem segurando o mesmo pincel. No entanto, para o trabalho do conhecimento, há várias vantagens quando feito em par: aumentamos a nossa concentração, criatividade (vide motivo 2) e aprendizado (vide motivo 3). Há variações mais recentes do trabalho em par: Dojo e Mob programming, em que mais de duas pessoas estão programando de fato juntas (em um único computador).
– Olhando para o teto. Pensamento do chefe tradicional: “fulano está sem fazer nada, vou atribuir uma nova tarefa a ele”. A criatividade depende de momentos de reflexão. Estar com os dedos digitando o teclado do computador, ou com a mão no mouse, não representam a parte importante do trabalho. Aliás, a digitação só deve acontecer como resultado da reflexão.
– Tempo para refrescar a cabeça. Há empresas que já reservam um espaço de lazer para os seus profissionais. Pensamento do chefe tradicional: “esse cara só quer distração”. Se a cultura local for tradicional, não adianta ter mesas de ping-pong ou video games. Essas áreas estarão sempre vazias pois as pessoas terão medo de serem julgadas. Espairecer é muito importante para que o inconsciente trabalhe de forma livre. Muitas ideias vêm do ócio criativo.
Quando alguém critica alguma dessas atitudes acima, provavelmente essa pessoa ainda não quebrou o paradigma da não linearidade. Muitas vezes vemos gestores em um papel de capataz dando chicotada nas pessoas que não estão com a mão na massa. Esse gestor acaba focando em micro-gerenciamento, controle de processo, cobrador de cumprimento das estimativas, entre outros. Sem essa quebra de paradigma, ele jamais terá times auto-organizados e nunca atingirá a alta performance.
Conclusão:
Neste século XXI, estamos testemunhando uma transição da forma de se trabalhar. A nível mundial, a força de trabalho está se deslocando do braçal para o criativo. Assim também deve acontecer com as nossas formas de gerenciar pessoas. Não podemos usar as mesmas ferramentas usadas tradicionalmente. Precisamos criar mecanismos de motivação que explorem positivamente a nossa não linearidade. Steve Jobs já falava que diferente de um trabalhador braçal, um desenvolvedor de software ou um designer pode render até 100 vezes mais que um outro. Ou seja, a nossa não linearidade pode permitir uma produtividade exponencial. Aliás, a colaboração também pode trazer um resultado exponencial, tema do segundo motivo pelo qual não devemos chamar as pessoas de recursos.
Humanos sim! Recursos não!
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