Abordarei neste artigo três aspectos fundamentais de um bom lugar para trabalhar: Integralidade, Autogestão e Multidisciplinaridade.
Como você talvez saiba, a K21 é uma empresa que oferece treinamentos e consultoria em agilidade para organizações e trabalhadores do conhecimento que querem ser mais eficazes e crescer de forma sustentável.
Nas últimas duas semanas, ocorreram no nosso dia a dia alguns imprevistos raros, de alto impacto e de baixa previsibilidade. Vou tratar aqui especificamente do último imprevisto, ocorrido há poucas horas, mas cujos efeitos imediatos dizem muito sobre nós, K21, enquanto organização: a minha avó teve um problema grave de saúde, tendo que correr para o hospital logo no comecinho do dia.
O efeito imediato de receber uma notícia desse tipo às 8 horas da manhã, enquanto me deslocava para o segundo dia de um treinamento, é rever prioridades. E aí, é mais importante manter a agenda do treinamento ou ir entender de perto o que está acontecendo com minha avó?
Em organizações tradicionais, definir a prioridade entre estes dois itens geralmente não faz o menor sentido, uma vez que são coisas que fazem parte de contextos completamente diferentes, que entre si já tem uma prioridade absoluta: “primeiro família, depois trabalho, não importa a situação!”. Essa linha de raciocínio, apesar de ser geralmente bem aceita pela sociedade, traz consigo consequências clássicas que qualquer um já viu por aí, como por exemplo, faltar ao trabalho e deixar as bombas que lá explodirão para quem lá estiver. “Ninguém lá da minha empresa virá aqui resolver o problema da minha avó, então eles que se virem enquanto eu resolvo minha vida!”.
O problema é que isso é só a ponta do iceberg. É a partir deste tipo de comportamento de “ninguém tem nada a ver com a minha vida, a empresa que se vire” que surgem as oportunidades para contar pequenas mentiras como aquela conjuntivite que nunca existiu, mas que rendeu uma semana em casa. Ou aquele tio distante que “faleceu” e rendeu um dia a mais na praia naquele pós-feriadão. Pronto! Está criado o ambiente de desconfiança.
“Você pode avaliar uma organização pelo número de mentiras que precisa contar para fazer parte dela.” Citação de Parker Palmer no livro Reinventando as Organizações, de Frederick Laloux.
Aqueles mais workaholics, que não faltariam ao trabalho nem no dia do próprio velório (mais uma vez a prioridade absoluta aplicada), fatalmente entrarão neste jogo, mas do lado oposto, e logo começarão a desconfiar da veracidade das alegações daqueles que sempre colocam o trabalho de lado para priorizar a família sem pensar nas consequências. Ainda mais quando isso ocorre mais de três vezes em menos de três meses como, infelizmente, foi o meu caso.
Em ambos os casos, a raiz dos problemas (a desconfiança e o pouco caso) está provavelmente na separação absoluta entre vida profissional e pessoal. Sistematicamente, quando tentamos isolar completamente dois contextos (pessoal e profissional) que tem um ponto em comum (você), a consequência é a falta de visibilidade (inclusive sua) do sistema como um todo (sua vida).
Integralidade
Não é simples separar uma coisa da outra. Seres humanos são complexos por natureza.
Integralidade é tratar a pessoa como ser humano “com mais cuidado e com delicadeza”, valorizando e respeitando, acima de qualquer coisa, as suas necessidades, portanto, é cuidar do todo. Alguns estudiosos derivam cuidado do latim, usada num contexto de relações de amor e amizade. Outros derivam cuidado de cogitare, dando o sentido de pensar em, aplicar a atenção, aplicar o pensamento em alguma coisa. A integralidade e o cuidado apontam para as dimensões do viver humano que integram espaços, condições e expressões singulares que permitem reafirmar a complexa unidade humana. (Viegas e Penna, 2015)
Integralidade é um aspecto fundamental de um bom lugar para se trabalhar. No momento em que eu ligo para alguém que trabalha comigo, explico a situação da minha avó e essa pessoa junto com outros companheiros de trabalho imediatamente me ajudam a encontrar soluções para resolver o problema, eu me sinto mais humano. Me sinto menos recurso. A lógica fordista aplicada erroneamente a trabalhadores do conhecimento mais uma vez passa a não fazer o menor sentido.
Sou um ser humano e, consequentemente, vivo num ambiente complexo. Sistemas complexos pressupõem imprevistos e aleatoriedade. Não trate como um sistema simples um sistema complexo. Não trate como máquina um trabalhador do conhecimento.
Ou melhor: não trate ninguém como máquina! Máquinas que fazem parte de linhas de produção em sistemas lineares, com pouca variabilidade e nenhuma capacidade de adaptação, fator essencial para qualquer trabalhador do século XXI.
Auto-organização
É da capacidade de adaptação que emerge a tão sonhada auto-organização. Ou talvez seja o contrário: é da auto-organização que vem a capacidade de adaptação.
Os caminhos para resolver um problema como o meu em uma estrutura organizacional tradicional e rígida são bem simples, mas talvez pouco eficientes: avisar o chefe do problema e pedir para se ausentar do trabalho por um dia. Ou, se o chefe for um babaca, simplesmente avisá-lo que não vai trabalhar hoje (ou nem isso), sem se importar com o que ele acha ou deixa de achar.
Pensando nesses caminhos, não tem como não comparar o trabalhador pedindo a autorização do chefe para não ir ao trabalho com uma criança pedindo a autorização dos pais para não ir à escola. É absurdo ver este teatro de pais-e-filhos acontecendo com pessoas, em ambos os papéis, maduras o suficiente para tomar grandes decisões em sua vida pessoal como comprar um apartamento, um carro, casar ou mesmo ter filhos. O jogo de poder das hierarquias tradicionais faz com que você, pai ou mãe de três filhos, não possa tomar a decisão e as ações necessárias para se ausentar do trabalho por um dia sem antes pedir a benção do chefe.
Empoderamento, neste caso, é talvez o primeiro passo para acabar com este jogo deprimente.
“Empoderamento significa que alguém no topo deve ser sábio e nobre o bastante para abrir mão de parte desse poder.” Frederick Laloux, em Reinventando as Organizações
Mas empoderamento, pura e simplesmente, não basta. Na ausência de hierarquia, as equipes autogeridas precisam ter todas as informações disponíveis para tomar as melhores decisões¹. Estrutura e clareza de responsabilidades também são dois atributos importantes².
Felizmente, no meu caso, eu tinha poder dentro da nossa estrutura horizontal e informação o suficiente para saber se poderia tomar a decisão de me ausentar ou não sem precisar pedir a benção de ninguém. Ver meus companheiros se mobilizando e em menos de uma hora mudarem suas agendas previstas para aquele dia exclusivamente para permitir que eu pudesse me ausentar, foi mágico. Autogestão é isso!
Multidisciplinaridade
Por outro lado, confesso que por algum tempo, mesmo com todos na empresa tendo poder suficiente para tomar este tipo de decisão, as ações necessárias para que a minha agenda pudesse ser liberada sem maiores danos eram inviáveis: considere, por exemplo, que somente eu tivesse as habilidades e conhecimentos necessários para dar o treinamento agendado para aquele dia. Neste caso, não há autogestão no mundo que fizesse com que qualquer pessoa, por mais disposta que estivesse, pudesse me substituir.
Logo, autogestão e integralidade somente, não bastam. Felizmente, como bons discípulos de Peter Senge e do pensamento sistêmico, aprendizagem em equipe está entre os valores da nossa organização. Estamos construindo a empresa em bases sólidas e densas. De tanto dar treinamentos em par com diversos companheiros de trabalho, todos desenvolvemos em algum nível, de certa forma, as habilidades necessárias para apoiar ou cobrir uns aos outros em momentos como este, em que alguém precisa se ausentar.
Multidisciplinaridade é fator chave para criar organizações antifrágeis. Por mais integralidade e autogestão que exista na organização, quando o ocorrer um cisne negro (acontecimento raro, de alto impacto e de baixa previsibilidade) e ninguém for tão herói (com superpoderes que ninguém tem) quanto aquela pessoa, não tenha dúvidas: ela vai quebrar.
Quebrar, no meu caso, significaria passar o dia inteiro trabalhando sem poder sair para ajudar a minha avó; ou, por outro lado, cancelar o segundo dia de um treinamento importantíssimo para nossa organização e para o nosso cliente. Tanto faz: qualquer uma dessas duas opções me deixariam perplexo.
Felizmente, assim como Daniel Teixeira considerou a K21 um bom lugar para se trabalhar, hoje posso dizer com todas as letras: estou em um bom lugar para se trabalhar.
Um fato muito curioso é que, após encontrar com a minha avó (que agora está melhorando, obrigado) descobri que o hospital para o qual ela foi não era um bom lugar para se trabalhar. Você consegue imaginar o atendimento dos médicos e enfermeiros em um ambiente que definitivamente não é um bom lugar para se trabalhar? Você gostaria de ser internado em um lugar que não é um bom lugar para se trabalhar?
E você, afinal, passa suas 40 horas semanais em um bom lugar para se trabalhar?